sexta-feira, 26 de março de 2021

Teorias da Conspiração

Especialistas em diferentes áreas do conhecimento explicam que a terra é redonda; que o ser humano realmente chegou à Lua; que as vacinas são seguras e que a pandemia do Covid-19 é uma doença letal. Contudo, para alguns, nada disso parece ser suficiente. Os mitos e as falácias persistem independentes da ciência e de qualquer lógica.

Quem acredita em teorias conspiratórias, no fundo, apenas confirma as “suas próprias verdades”. O fato de cientistas e pesquisadores contestarem muitas destas ideias, acaba suscitando, para essas pessoas, o imaginário de que existiria uma conspiração oculta e maligna para esconder certas verdades. Sobretudo os professores e as universidades seriam parte de uma nova ordem global com objetivos obscuros.

De acordo com o pesquisador estadunidense, Michael Barkun, teorias da conspiração são explicações sobre eventos baseadas na crença de que as organizações sociais, políticas e religiosas, principalmente nos dias atuais, seriam formadas por grupos sempre dispostos a agir de maneira secreta com o intuito de alcançar fins danosos à humanidade. Nada aconteceria acidentalmente; nada é o que parece ser; tudo estaria ligado de forma oculta. O que estaria no bojo desta nova ordem seria o resultado de intenções ou vontades diabólicas.

Em geral, as teorias da conspiração supõe que por trás de cada decisão humana haveria uma ação dissimulada e maligna de indivíduos e grupos que lutam para dominar o mundo. São princípios que se baseiam na ideia religiosa de que a realidade é orientada por uma eterna luta entre o bem e o mal. Trata-se, pois, de entendimentos que se consolidam por meio de discursos de ódio contra determinados segmentos, transformando-os em bodes expiatórios, sob a alegação de que estes buscam dominar o mundo ou conspiram para conquistá-lo.

As teorias da conspiração adquirem maior visibilidade no século passado, especialmente no meio da Segunda Grande Guerra, quando Hitler e seus aliados engendram meios para justificar a perseguição e o extermínio de milhões de pessoas. À época, a justificativa para a retaliação das massas foi uma pretensa conspiração judaica orquestrada também por grupos comunistas, imigrantes e homossexuais. A crise da sociedade alemã se encontrava diretamente ligada a estes setores. Justificava-se, portanto, o extermínio ou “limpeza” para que o progresso pudesse se concretizar.

No Brasil, nos últimos anos, infinitas teorias conspiratórias tem no ideólogo Olavo de Carvalho um de seus principais protagonistas. Entre tantos situações, o que se observa, por exemplo, são defensores de movimentos como “Escola sem Partido” (ESP) e “Ideologia de Gênero” se dedicando a atacar a obra de Paulo Freire, professores e Universidades, a partir de uma base ideológica conhecida como “marxismo cultural”. Até agora, parecem não ter conseguido muito êxito em mudar a legislação, mas, invariavelmente, vem contaminando o ambiente educacional brasileiro, contribuindo para que, cada vez mais, educadores tenham se tornado alvo de discursos de ódio que chegam, não raro, a convergir para agressões verbais e físicas. Professor é o doutrinador, desvirtuador, o inimigo. Se não é possível exterminá-los, devem ser mantidos sob constante pressão e vigilância.

Hoje as notícias falsas veiculadas nas mídias sociais ajudam a divulgar de maneira ampla e quase irrestrita muitas teorias conspiratórias. Algumas, inclusive, sendo socialmente disseminadas como notícias e recebidas como explicações legítimas sobre eventos os mais diversos. A importância crescente das fake news no debate público atual ajuda a criar um ambiente propício à disseminação e à aceitação das teorias conspiratórias como uma explicação legítima. Em tempos de pandemia, há quem afirme, sem titubear, por exemplo, que o vírus tenha sido criado de forma deliberada em laboratório pelos chineses com o propósito de alcançar objetivos escusos.

Vivemos, no século XXI, o aprofundamento da crise nas democracias representativas. Com a popularização da Internet e o crescimento das redes sociais, a precarização do trabalho, a falta de expectativas para a superação dos dilemas políticos, econômicos e sociais, o que se vislumbra é um ambiente de deterioração do diálogo construtivo em prol do bem comum. As teorias conspiratórias se tornaram uma parte importante do senso comum. Vale aquilo que EU acho, quero e acredito! Os outros que se danem!

quarta-feira, 17 de março de 2021

SEM LIMITES E SEM VERGONHA

A falta de limites no Brasil não nasceu da noite para o dia. É preciso um ambiente de muita perversão política para que se tome discurso de ódio por “liberdade de expressão” e promoção da desordem autoritária por exercício da democracia. É preciso compreender que existe um elemento essencial e fundante para que o ódio à democracia ganhe forma institucional: o olhar complacente do sistema judiciário, um Congresso de costas para o povo e a grande mídia papagaiando sobre as tais benesses do “livre mercado”. São esses mesmos setores que se dizem surpresos e até arrependidos quando a perversidade e o discurso do ódio vai tomando conta em episódios como de um certo deputado defendendo sandices em relação a mais alta corte de justiça do país.

Para não ser compreendido de forma equivocada, importa que sejamos capazes de perceber que, para nós, os brasileiros, se a democracia formal não é usual, o que se deveria dizer sobre as circunstâncias de uma pretensa “cultura democrática”? É certo que vamos convivendo, dia após dia, não apenas com a violência e o autoritarismo, mas, sobretudo, com discursos que tratam de normalizar a violência por parte de políticos lacaios e apresentadores de programas pinga-sangue de televisão que pregam o assassinato, a tortura e a eliminação do outro. Uma espécie de violência purificadora por meio de insultos e muita agressividade.

A crise sanitária, econômica, institucional e política na qual nos encontramos mergulhados até o pescoço, faz com que gestos de violência, intolerância e ódio - uma das características históricas da identidade Brasileira - se tornem, ainda mais letais, do que costumam ser. Se o país vai sendo forjado nesta lógica de buscar meios para matar e desorganizar o seu povo é bastante óbvio que também não venha a cogitar certos limites para tal e, por extensão, o imperativo da necessária vergonha diante de situação tão absurda vai pro brejo.

O Brasil das elites e de seus abjetos privilégios não tem qualquer embaraço ou vergonha de odiar o seus próprios irmãos e irmãs de caminhada. Se o sujeito for pobre, negro ou indígena, pior ainda. O país não perece sentir vergonha ou ter melindres em propor o fechamento de um Congresso a partir de quem, efetivamente, deveria ter o necessário discernimento para legislar. Como compreender que alguém que tenha recebido a confiança da população ao ser eleito, depois, venha com um discurso absurdo de banimento da própria instituição para a qual tenha sido escolhido? Os psiquiatras, no Brasil, definitivamente, não parecem ter vida fácil.

Este país não nunca teve vergonha em perseguir quem pensa diferente ou que ousa questionar a lógica perversa que nos constitui a séculos. Se persegue juízes, mas, não raro, há também aqueles juízes que cumprem a tarefa de perseguir. O país pouco aprende com as suas desventuras e nunca teve a vergonha que deveria sentir acerca da famigerada tortura que fez e faz parte da nossa história.

O Brasil não tem vergonha de ter um presidente que vem entregando o seu povo a própria sorte durante uma pandemia sem precedentes. O mesmo que enquanto parlamentar, por quase três décadas, inúmeras vezes, louvou torturadores dentro da Casa do Povo. O Brasil já perdeu o seu rumo, seus limites e a vergonha, faz tempo!

segunda-feira, 8 de março de 2021

O Paradoxo da Tolerância

A democracia deve tolerar os intolerantes? A 'liberdade de expressão' a eles conferida, permitindo-lhes disseminar ideias antidemocráticas, pode levar ao desaparecimento da democracia? Estas e outras perguntas tem a ver com o chamado 'paradoxo da tolerância'. Um conceito criado pelo filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994). As ideias de Popper acabaram sendo bastante lembradas após a polêmica em torno da prisão do deputado Daniel Silveira, depois do mesmo publicar um vídeo em que ofende e ameaça ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), além de fazer apologia ao AI-5 (Ato Institucional nº 5).

Não deixa de ser irônico que, em sua defesa, o deputado tenha defendido, por meio de seu advogado, que estaria sendo vítima de um "violento ataque à liberdade de expressão". Agora, a sua liberdade dependia, justamente, da decisão da mesma instituição que ele, outrora, havia imaginado que melhor seria se pudesse ser fechada.

O paradoxo da tolerância foi descrito por Popper em seu livro - A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos. Nele, é apresentada a ideia de que, em um grupo ou confederação de pessoas, a tolerância ilimitada leva, paradoxalmente, ao desaparecimento da tolerância. Para o filósofo, não se trata de proibir que ideias intolerantes tomem forma, mas, que elas possam ser combatidas por argumentos racionais e que impactam no bem da coletividade. Manifestações preconceituosas ou violentas, por exemplo, precisam ser toleradas até um certo limite. Se assim não for, a própria liberdade de manifestação poderia estar ameaçada e até sofrer a restrição de algum grupo dominante.

Popper postula que a tolerância ilimitada levaria ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes podem, em última análise, serem destruídos. Nada mais correto, portanto, que, em nome da tolerância, reivindicar o direito de não tolerar aqueles que são intolerantes por meio dos rigores da lei e da ordem.

A questão que parece se colocar no horizonte diante de fatos tão complexos é se a sociedade brasileira seria capaz de aceitar que a liberdade de expressão e a democracia sejam utilizadas para o cometimento de crimes que, de uma certa maneira, são crimes que colocam fim à liberdade de expressão e a própria democracia. O direito individual como no caso da liberdade de expressão jamais deveria servir de salvaguarda para a prática de atos ilícitos. Uma sociedade que deseja ser plural, informada e livre, deve facultar o conhecimento necessário para que o respeito mútuo e a tolerância sejam vivenciados, não apenas no plano formal, mas, sobretudo, nas interlocuções do dia a dia.

Ao longo da história da humanidade, grupos dominantes tentaram silenciar, ridicularizar, desqualificar e até aniquilar indivíduos pelos mais diversos motivos. Qual seria, pois, o pressuposto aceitável para convencer outras pessoas acerca das nossas próprias convicções? Um dos caminhos continua sendo o diálogo. A possibilidade de que o outro exercite o seu discernimento para compor a sua própria visão de mundo com base naquilo que lhe é transmitido levando em conta o bem comum. A outra maneira, como observado por Popper, é a defesa incondicional de apenas um ponto de vista por meio da força ou do medo. O resultado é que o outro não seja convencido por meio de argumentos racionais ou lógicos, mas, que este se submeta a alguém mais forte ou violento.

A prisão do deputado Daniel Silveira mostra de maneira clara que a democracia no Brasil vive o paradoxo da tolerância. Assim, se a sociedade for tolerante em demasia com aqueles que pregam a intolerância, por óbvio, haverá de prevalecer a própria intolerância. Fica, pois, a pergunta de como se deve lidar com pessoas que, a exemplo do deputado, reiteradamente, desafiam a ordem democrática, ofendendo, incitando e pregando a violência contra pessoas e instituições?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A Cama de Procusto


A mitologia grega descreve o personagem Procusto como aquele que atraia viajantes para a sua casa situada na serra de Eleusis, entre Trezena e Atenas. Seu comportamento simpático e convidativo escondia um segredo terrível. Todos os convidados precisavam se deitar em uma cama de ferro e quando dormiam ele aproveitava para amarrá-los e amordaçá-los. Se a pessoa fosse mais alta que o leito, e a cabeça, os pés ou as mãos não coubessem nas dimensões da cama, o gigante os cortava; se o corpo fosse menor, ele quebrava os ossos para que se ajustasse às medidas.

A deusa Atena incomodada com o clamor das vítimas se dispõe a procurar o malfeitor na tentativa de convencê-lo a mudar de atitude, mas, fica estarrecida quando ouve a argumentação de que ele estava apenas fazendo aquilo que lhe havia sido designado pelos deuses. A sua cama estava apenas servindo à justiça e acabando com as diferenças entre as pessoas.

Verdade é que ninguém jamais se adaptava à cama, pois havia dois tamanhos para que o hóspede nunca coubesse perfeitamente. O reinado de terror protagonizado por Procusto durou muito tempo, até que Teseu — o herói que derrotou o Minotauro da ilha de Creta e se tornou o rei de Atenas — capturou o gigante e o sentenciou ao mesmo tratamento que dava aos convidados, prendendo-o na cama e cortando a sua cabeça e os seus pés.

A estratégia utilizada por Procusto serve como metáfora para situações nas quais se busca impor um determinado padrão. Serve também, por consequência, para compreender e explicar momentos onde se quer obrigar que algo se encaixe em algum modelo pré-estabelecido. Por isso mesmo, ela representa os meandros da intolerância, e, nos dias atuais, certamente, auxilia a explicar melhor a negação da ciência e a relativização de vidas humanas.

A metáfora está muito ligada ao egoísmo. É óbvio que na realidade atual ninguém se utiliza dos mesmos requintes de crueldade, mas, não raro, o que vemos são palavras e gestos de agressividade e repulsa a quem pensa ou age diferente. O bandido da mitologia grega está sempre à solta em nosso mundo. Seu espírito aparece quando alguém sente vontade de enquadrar o outro em seus próprios padrões.

Indivíduos que se valem da lógica de Procusto defendem posições extremadas, que ferem o bom senso e obrigam os que estão sob o seu comando a se adequar aos seus delírios e a sua indiferença com o sofrimento e a morte dos semelhantes. Há aqueles, por exemplo, que se investem de uma pretensa autoridade religiosa e ousam interpretar as Sagradas Escrituras de acordo com o que querem. Os culpados, ou então, os “pecadores”, no caso, são sempre os outros.

O gesto simbólico de serrar ou estirar o hóspede de acordo com o tamanho da cama representa, entre outras coisas, o protagonismo individualista. A materialização do jeitinho, da intolerância e intransigência. Configura a tirania intelectual exercida por pessoas que não toleram e nem aceitam as ações e o ponto de vista alheio. Tem a ver com quem precisa “moldar” o outro, adaptando-o às suas próprias medidas.

Em analogia ao personagem mitológico, é preciso ter cuidado para não cortar aquilo que não nos interessa. Também levar em conta para não alongar ideias ou interpretações que não edificam. Importa, sobretudo, exercitar a coerência nas atitudes e ações. Não ser escravo de uma única régua de entendimento. Que saibamos nos libertar das algemas da prepotência, ampliando o conhecimento, valorizando aquilo que produz o bem comum, a justiça, o entendimento e a paz.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Mentalidades Inquisitoriais


Para muitos, a sensação é de termos sido lançados em um pesadelo. Diante dos absurdos que se repetem, há uma pergunta que ainda não recebeu uma resposta adequada: como permitimos essa longa noite que parece não ter fim? Por um lado, a visão hegemônica de mundo parece indicar que os “outros” devem ser percebidos como ameaças, concorrentes e, não raro, inimigos a serem destruídos. O egoísmo tornou-se uma virtude em um tempo no qual o objetivo recorrente é a acumulação de capital. Por outro, a esperança de um mundo melhor parece, paulatinamente, estar ficando debilitada.

O que deveria ser um exercício crítico e uma reflexão necessária para reduzir as opressões, tende a se aproximar, perigosamente, da intolerância e do reacionarismo. Hoje, basta uma palavra mal colocada ou mal interpretada para fazer cessar uma conversa ou qualquer possibilidade de diálogo. O outro, por mais próximo que esteja no campo das ideias, pode virar um inimigo a ser rechaçado e até destruído.

Ataques ao pensamento, às ideias e à cultura, parecem ser a bola da vez. Trata-se de abandonar o espírito libertário e igualitário para atuar a partir de condenações, slogans vazios; manifestações prepotentes. Mesmo em ambientes acadêmicos, podem se instaurar regimes marcados pela negação da ciência e o autoritarismo por conta de uma pretensa “doutrinação” que poderia estar ocorrendo nestes lugares. Qualquer contradição teórica ou frase descontextualizada pode descambar para ofensas e a agressões. Com frequência, há justificativas para a interdição do debate e a intimidação de educadores/as.

Uma parte significativa dessas posturas intolerantes, agressivas e de controle, nem partem de um Estado autoritário, mas, de uma parcela da população. Isso até poderia ser algo positivo se muitas destas pessoas não estivessem tomadas por uma visão inquisitorial de justiça sublinhadas por certezas tipicamente paranoicas. Vive-se um mundo em que o ódio se encontra liberado, em especial, nas redes sociais. Embora a liberdade de falar e de pensar esteja sob profunda vigilância, estamos em um momento no qual, em nome da tolerância e até do amor ao próximo, odeia-se cada vez mais.

Hoje, as mentalidades inquisitoriais, recorrem a seus inúmeros “manuais de comportamento” para estabelecer certas condutas. Ao seguir um tipo de “receita", as pessoas tornam-se acríticas e perdem a sua capacidade criativa. Afinal, é impossível construir coletivamente algo em prol do bem comum se inexiste a perspectiva da autonomia.

Quem quiser mudar a sociedade precisa abandonar certos discursos padronizados que só conseguem ter efeito para alguns poucos. Não se pode querer transformar o mundo podando o pensamento, interditando a fala ou reproduzindo apenas frases prontas. É preciso ajudar na transformação da sociedade, reconhecendo as diferenças, aprendendo com as contradições e participando ativamente da construção coletiva de um outro mundo.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Falácias e Humilhações

“Grandes mentes discutem ideias, mentes medíocres discutem eventos, mentes pequenas falam sobre os outros”

Eleanor Roosevelt
(Ex-Primeira-dama dos Estados Unidos. Grande defensora dos direitos humanos)

 

Quando falta capacidade argumentativa ou intelectual, a tendência é apelar para o lado pessoal. Infelizmente, esta sanha incontida para desqualificar o outro quando não se tem argumentos sólidos é cada vez mais comum em todas as esferas de nossa vida social. Presenciamos, quase todos os dias, incontáveis falácias e argumentações esdrúxulas, sobretudo, nas conhecidas mídias virtuais.

É por meio da falácia que se busca atacar o outro em vez de refutar suas ideias. Quem se utiliza da falácia, desqualifica os argumentos do outro por meio de ataques pessoais destinados a minar sua autoridade ou confiabilidade. São insultos pessoais, humilhações ou até mesmo destaques exacerbados para pretensos equívocos que alguém possa ter cometido em algum momento de sua vida. Há também, por óbvio, quem recorra à mentira ou exagere ao desvalorizar certas ideias. O objetivo é desacreditar o interlocutor, redirecionando o foco da atenção para algum aspecto irrelevante.

Tenho para mim que certas desqualificações pessoais dizem mais sobre quem ataca do que sobre quem é atacado. As falácias e humilhações costumam ser o resultado da falta de argumentos e de certas frustrações. Quando não se tem ideias sólidas, em geral, se recorre a argumentos sem tanto respaldo. Infelizmente, não é raro, perceber gente capaz de atacar de forma virulenta e fazer com que a outra pessoa se sinta envergonhada ou perca a sua credibilidade.

Poucos percebem, mas, ataques pessoais também desqualificam o agressor, pois mostram a sua irracionalidade e incapacidade argumentativa. Trata-se, pois, de pessoas que não conseguem debater no plano das ideias, e, por isso mesmo, buscam a todo custo, arrastar seus interlocutores para o plano pessoal. O principal problema é que, embora gostemos de nos ver como pessoas racionais e sensatas, somos, na verdade, bastante vulneráveis a certas falácias.

O conhecido sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, em uma de suas últimas entrevistas, reiterou que "o verdadeiro diálogo não é falar com pessoas que pensam o mesmo que você". Nessa ordem, é preciso compreender que poucos gostam de dialogar, mas, há quem, invariavelmente, acabe por se predispor a não fazê-lo. Assim não aprendem, não ampliam a sua visão de mundo, não crescem. Vivem em uma realidade diferente, por vezes, paralela aos acontecimentos.

Se algum dia estivermos no meio de um debate e formos tentados a atacar pessoalmente nosso interlocutor, é conveniente que paremos por um momento para refletir. É preciso pensar que um diálogo construtivo não é aquele em que existem vencedores ou vencidos, mas, onde ocorre o crescimento mútuo. O grande desafio para os dias atuais talvez seja decifrar esta pretensa superioridade ilusória: quando a ignorância se disfarça de conhecimento.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A LEI OU O EVANGELHO?

De um lado, os fariseus, doutores da lei, diligentes e rigorosos na aplicação das normas. Roubou? Deve pagar em dobro. Matou? Deve morrer. De outro, Jesus, tentando ensinar o caminho da misericórdia e do amor. Dois milênios mais tarde, a humanidade parece não ter perdido o impulso para condenar. Talvez o paralelo mais próximo do rigorismo moral e religioso na cultura ocidental seja o linchamento nas redes sociais e a chamada cultura da lacração e do cancelamento.

Essa apropriação do nome de Deus, dos símbolos e a lógica da religião para legitimar um projeto de poder é uma apropriação indevida e totalitária. Nada tem a ver com uma sociedade plural, muito menos com aquilo que se conhece como Estado democrático e de direito. Evidentemente que este tipo de situação não é algo novo, mas, por outro lado, é inegável que tenha se acirrado nos últimos tempos.

Se no Antigo Testamento a divindade era vista como alguém capaz de exigir fidelidade irrestrita sob pena de juízo, podendo tirar a vida e até exterminar o povo, com Jesus, o peregrino de Nazaré, ocorre uma mudança de compreensão. A fé cristã se traduz a partir de uma mensagem na qual Deus é a presença e a consolidação do amor. Trata-se de um Deus que não deveria ser temido, pois é alguém com quem as pessoas podem se relacionar pela linguagem do afeto e da generosidade.

Das coisas que a vida já me permitiu ver e aprender, afirmo sem titubear, julgamentos, condenações ou apedrejamentos, nunca serão parte da essência ou do caráter de Deus. Pelo mesmo motivo, interpretações moralizantes em relação a homofobia, xenofobia ou racismo, também são incompatíveis com aquilo que foi manifestado por Jesus. Ele ama as todas as pessoas independentemente da sua condição existencial, do seu gênero e, também, de suas possíveis transgressões.

Como não lembrar das inúmeras situações que vivenciamos aqui no Brasil no decorrer do ano 2020? Em meio a centenas, talvez milhares de casos, lembro aqui apenas do episódio da menina de dez anos que ficou grávida após ser estuprada por quatro anos por um tio. Por correr perigo de vida e não ter qualquer condição física ou emocional, foi submetida a um aborto por recomendação médica e com autorização judicial. O procedimento foi duramente criticado por alguns grupos religiosos. Reunidos na porta do hospital, manifestantes chamaram o médico de assassino e tentaram impedir a entrada da criança e de sua família no prédio.

Trata-se de um dos episódios mais tristes dos últimos tempos. Um fato vergonhoso e revoltante. O que foi feito com a criança é de uma crueldade inominável. Tanto o abuso sofrido quanto o julgamento e o linchamento moral, são páginas terríveis. Uma criança que deveria ser protegida de todas as formas, acabou sendo condenada em nome de uma pretensa moral religiosa. O caminho da misericórdia recomendado por Jesus, aparentemente, não supunha a preservação da vida da menina. Prevalecia o poder da lei contida no Antigo Testamento.

Vejamos: uma gravidez como consequência de um estupro, e, portanto, de uma violência contra uma criança sem qualquer condição de gerar filhos, coloca um ser humano em um sofrimento absurdo. A despeito de qualquer conhecimento bíblico, cientifico ou médico, é preciso exercitar a solidariedade, o afeto, o apoio emocional, psíquico e espiritual, diante de algo tão trágico. Jesus não estava preocupado em ser um juiz implacável. Buscava, antes, ser compassivo, misericordioso, amoroso. Alguém que se importava em compreender as angústias e vicissitudes inerentes à condição humana.

Parece evidente que nos últimos anos, e de forma cada vez mais incisiva, o espaço público brasileiro vem se notabilizando pela viabilidade de um projeto de poder político que tende a se sustentar de acordo com a lógica do Primeiro Testamento. Fazendo prevalecer um modelo teocrático. Um líder que age e governa em nome de Deus. No entanto, este “governar em nome de Deus” é, sobretudo, impor uma verdade ou lei religiosa. No imaginário popular e, por consequência, no senso comum, se quem governa age em nome de Deus, por definição, não deveria sofrer questionamentos.

A história ensina que qualquer tentativa de dar ao poder político uma inspiração transcendental, em muitos lugares e situações, sempre se mostrou muito perigoso. Alguém que esteja exercitando o seu poder e a sua função no âmbito de um Estado democrático de direito, especialmente em uma sociedade plural e republicana, como no caso do Brasil, estará, invariavelmente, sujeito a questionamentos. É importante nunca desconsiderar o fato de que o poder público existe para defender a equidade, a justiça, a imparcialidade, os interesses de toda as forças presentes em uma sociedade, inclusive aquelas de incidência minoritária.